Crônicas - Humberto Campos

ESPÍRITO DESENCARNADO

Humberto de Campos - ESPÍRITO DESENCARNADOÉ comum nos iludirmos neste mundo, afinal, orgulho e vaidade ainda são atributos fartos que alimentamos em nossa esfera íntima.
Mas, e quando retornarmos à realidade espiritual? Como será? Esta pompa toda nos servirá de algo?
Será sim, um enorme peso que arrastaremos pelos caminhos etéreos, impedindo-nos de alcançar paragens mais altas.
Nesta crônica de Humberto de Campos vemos um fatídico exemplo desta ilusão, que se desvaneceu ao primeiro contato com a realidade da vida no plano espiritual.

Centro Espírita Vinhas do Senhor
Pouso Alegre/MG, 26 de fevereiro de 2015.

ESPÍRITO DESENCARNADO

Humberto de Campos
Do livro: Lázaro Redivivo – FEB

 

O Espírito de Garcia Maciel aproximava-se do “outro mundo”, tomado de infinito receio.

Afinal, não era a morte outro monstro lendário a desafiar a pobreza humana. Fizera-se Hércules, mentalmente, para sentir-se desafrontado, ante a serpe desconhecida, mas, agora, desejava fazer-se verme. Ao longe, aceitava-lhe outra paisagem. Desdobravam-se, perante os seus olhos extasiados, maravilhas de natureza divina, que jamais pudera conceber na jaula dos ossos. E sentia bem que a sua antiga organização fisiológica não passava de jaula, embora de essência divina, porque, observando a amplitude dos novos céus e a beleza dos caminhos novos, chegava à conclusão de haver atravessado a existência humana na condição de uma fera. Lembrava os tempos de revolta íntima, os desequilíbrios emocionais de que era vitima constante, e sentia vergonha. No fundo, acreditava não ter vivido à luz dos valores espirituais e sim à maneira de leão, provisoriamente guindado à forma humana. Os gritos de vaidade ferida, os ataques de orgulho humilhado, com os quais tantas vezes escandalizara os amigos e inimigos, não constituíam característicos do grande animal do deserto?

Foi por isso que Garcia Maciel, homem sofredor, que desempenhara atribuições de escriba moderno entre as criaturas, chorou copiosamente, envergonhado e abatido.

Rabiscara muitas páginas e gastara imensa quantidade de fosfato e papel, informando o público. Entretanto, como não se lembrara de escrever exaltando a vida vitoriosa? Preferira a consulta incessante aos arquivos e a descida ao passado remoto. Entusiasmara-se com as histórias de deuses e ninfas, perdera-se nas divagações dos filósofos e mergulhara a mente nos documentos antigos, como o rato de livros velhos, para enfileirar, em seguida, as referências preciosas, mas… e a realidade eterna? Em verdade, não lhe merecera maior atenção. Fixara o momento, pincelara o quadro da hora, absorvera-se no imediatismo, mas olvidara o espírito imortal e a grandeza do Universo Divino. Admitira, nos seus tempos de pão difícil, que a decifração dos mistérios da alma era função do sacerdote, mas a revelação defrontava-o ali, depois do sepulcro, a ele que não fora ministro religioso de qualquer confecção e que se filiara, sempre, à congregação dos desiludidos e descrentes.

Banhavam-no os raios da luz misericordiosa e sublime das bênçãos de Deus.

Demorou-se Garcia algum tempo, em jornada ativa, antes de alcançar as primeiras portas.

Ao seu lado, outros seguiam, receosos e angustiados. Ninguém poderia varar a fronteira sem limpar os pés e mudar as sandálias.

Depois do inesperado esforço e da longa expectativa, entrou, humilde. Contudo, a autoridade espiritual que presidia no pórtico, recebeu-o com carinho e bondade. Não o tratava como se fôra um leão, de quem se sentia ele parente próximo. Acolhia-o como a um menino necessitado de socorro, desses que se perdem na rua, não por falta de assistência, mas pelo congênito apego à vagabundagem.

Saudações e agradecimentos.

– Agora, meu amigo – falou o porteiro, amável –, encontras-te no limiar de maravilhoso e divino santuário. É preciso, entretanto, esperares, muito tempo, a entrada definitiva.

Todavia, podes penetrar o átrio, descansar e refazer-te.

Semelhante concessão significava uma bênção. As perspectivas eram magníficas. Estradas brilhantes desenhavam-se-lhe aos pés, recordando o paraíso bíblico, iluminado por legues de luz e atapetado de flores resplandecentes. Para o recém-chegado, o átrio, em si mesmo, já significava o céu. Entretanto, Garcia recuou. E os amados? Deixara no purgatório terrestre as afeições mais doces. O encarregado da recepção compreendeu-lhe a angústia e perguntou:

– Que sentes?

– Meu benfeitor – disse o novato, hesitante –, e os bens de minhalma que ficaram na Terra?

– De ti mesmo, constam aqui somente os bens que trouxeste. Quanto aos que deixaste, na esfera carnal, constituíam um empréstimo a longo prazo.

Desapontado, Garcia tornou:

– E a esposa, os filhos, os amigos?

– Todo amor que entesouraste – esclareceu o interlocutor – servirá a ti mesmo. Bem-aventurado aquele que ama sem aguardar retribuição! Quando o matrimônio é de almas, a união continua independentemente da distância e do corpo físico; quando os filhos compreendem os pais e os amam, a morte não extingue os laços que os identificam, e quando os amigos estimam as qualidades espirituais, a separação temporária não anula a

confiança fraternal. No entanto, se esses fundamentos não preponderavam em suas ligações, todos os títulos do sangue e da convenção representam, de fato, o passado morto, extinguindo-se com a derradeira pá de terra que te cobriram os despojos.

Garcia experimentou o frio terrível de quem pela primeira vez se encontra com a verdade.

– Oh! como desejava esquecer tudo! – exclamou.

– Ainda não mereces, porém, a bênção do olvido construtivo – aduziu o porteiro, afavelmente –, antes, é necessário voltes ao mundo, a fim de apagar certas garatujas de tua pena.

Prestaste aos homens muitas informações descabidas e torna-se indispensável substituí-las por esclarecimentos legítimos. De quando em quando, voltarás aqui, refazendo as fôrças; todavia, somente depois de completares a obra penetrarás o templo sublime, onde os redimidos esquecem todo o mal.

Garcia agradeceu e recolheu-se ao repouso.

Volvido algum tempo, apresentou-se em forma ao orientador e solicitou o programa de serviço.

– Regressarás em espírito ao campo antigo – explicou o benfeitor – e ensinarás o bem e a verdade, lutando contra o terror da morte e glorificando a alegria da vida. Mas, ouve: abstém-te de todas as preocupações pessoais, inclusive do nome que te serviu entre as criaturas.

Lembra-te de que o santuário te fará conhecer mais tarde o nome que te guarda o Senhor, no livro da vida eterna.

Garcia, contudo, que tanto se envaidecia, noutro tempo, ante as próprias página… perguntou, desconcertado:

– Como me identificarei entre os homens?

O porteiro fez um gesto expressivo e informou.

– Não te preocupes. Para eles, por mais que te esforces, serás sempre “alma do outro mundo” ou “Espírito desencarnado”.

O antigo escrevinhador voltou à Terra, mas não se conformou. Queria fazer-se visto, ouvido, conhecido, identificado e usou o seu nome, largamente, como o industrial que ama a marca de sua fábrica.

Dentro em pouco, porém, era tamanha a perturbação em tôrno de sua memória, que o pobre amigo quedou-se, confundido e desanimado, em profundo silêncio.

O trabalho, contudo, esperava-lhe a boa vontade e Garcia regressou à oficina bendita do

esclarecimento e da fé, de alma novamente voltada para a Misericórdia divina.

Entretanto, ao fazer-se sentir entre os velhos companheiros de luta, se alguém indagava de sua identidade, respondia invariavelmente:

– Não, meus amigos, eu não sou Garcia Maciel. Eu sou “alma do outro mundo”, “Espírito desencarnado”…

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