Crônicas - Humberto Campos

O Servo Bom

Zacheu

Humberto de Campos

Extraído do Livro: Boa Nova – FEB

A condenação das riquezas se firmara no espírito dos discípulos com profundas raízes, a tal ponto
que, por várias vezes, foi Jesus obrigado a intervir, de maneira a pôr termo a contendas injustificáveis.
De vez em quando, Tadeu parecia querer impor aos assistentes das pregações do lago a entrega de
todos os bens aos necessitados; Felipe não vacilava em afiançar que ninguém deveria possuir mais que
uma camisa, constituindo uma obrigação tudo dividir com os infortunados, privando-se cada qual do
indispensável à vida.
– E quando o pobre nos surge somente nas aparências? – replicava judiciosamente Levi – Conheço homens abastados que choram na coletoria de Cafarnaum, como miseráveis mendigos, apenas com o fim de se eximirem dos impostos. Sei de outros que estendem as mãos à caridade pública e são proprietários de terras dilatadas. Estaríamos edificando o Reino de Deus, se, favorecêssemos a exploração?
– Tudo isso é verdade. – Redargüia Simão Pedro. – Entretanto, Deus nos inspirará sempre, nos momentos oportunos, e não é por essa razão que deveremos abandonar os realmente desamparados.
Levi, porém, não se dava por vencido e retrucava:
– A necessidade sincera deve ser objeto incessante de nosso carinhoso interesse; mas, em se tratando dos falsos mendigos, é preciso considerar que a palavra de Deus nos tem vindo pelo Mestre, que nunca se cansa de nos aconselhar vigilância. É imprescindível não viciarmos o sentimento de piedade, ao ponto de prejudicarmos os nossos irmãos no caminho da vida.
O antigo cobrador de impostos supunha, assim, a sua maneira de ver ; mas Felipe, agarrando-se à letra dos ensinos, replicava com ênfase:
– Continuarei acreditando que é mais fácil a passagem de um camelo pelo fundo de uma agulha do que a entrada de um rico no Reino do Céu.
Jesus não participava dessas discussões, porém, sentia as dúvidas que pairavam no corarão dos discípulos e, deixando-os entregues ao seus raciocínios próprios, aguardava oportunidade para um esclarecimento geral.
***
Passava-se o tempo e as pequenas controvérsias continuavam acesas.
Chegara, porém, o dia em que o Mestre se ausentaria da Galiléia para a derradeira viagem a Jerusalém. A sua última ida a Jericó, antes do suplício, era aguardada cora curiosidade imensa. Grandes multidões se apinhavam nas estradas.
Um publicano abastado, de nome Zaqueu, conhecia o renome do Messias e desejava vê-la. Chefe prestigioso na sua cidade, homem rico e enérgico, Zaqueu era, porém, de pequena estatura, tanto assim que, buscando satisfazer ao seu desejo ardente, procurou acomodar-se sobre um sicômoro, levado pela ansiosa expectativa com que esperava a passagem de Jesus. Coração inundado de curiosidade e de sensações alegres, o chefe publicano, ao aproximar-se o Messias, admirou-lhe o porte nobre e simples, sentindo-se magnetizado pela sua indefinível simpatia. Altamente surpreendido, verificou que o Mestre estacionara a seu lado e lhe dizia com acento íntimo :
– Zaqueu, desce dessa árvore, porque hoje necessito de tua hospitalidade e de tua companhia.
Sem que pudesse traduzir o que se passava em seu coração, o publicano de Jericó desceu de sua improvisada galeria, possuído de imenso júbilo.
Abraçou a Jesus com prazer espontâneo e ordenou todas as providências para que o querido hóspede e sua comitiva fossem recebidos em casa com a maior alegria. O Mestre deu o braço ao publicano e escutava atento as suas observações mais insignificantes, com grande escândalo da maioria
dos discípulos. “Não se tratava de um rico que devia ser condenado?” Perguntava. Felipe a si próprio.
E Simão Pedro refletia intimamente : – “Como justificar tudo isto, se Zaqueu é um homem de dinheiro e pecador perante a lei?”
A breves instantes, porém, toda a comitiva perpetrava na residência do publicano, que não ocultava o seu contentamento inexcedível. Jesus lhe seduzira as atenções, tocando-lhe as fibras mais íntimas do Espírito, com a sua presença generosa. Tratava-se de um hóspede bem-amado, que lhe ficaria eternamente no coração.
Aproximava-se o crepúsculo, quando Zaqueu mandou oferecer uma leve refeição a todo o povo, em sinal de alegria, sentando-se com Jesus e os seus discípulos sob um vasto alpendre. A palestra versava sobre a nova doutrina e, sabendo que o Mestre não perdia ensejo de condenar as riquezas criminosas do mundo, o publicano o esclarecia, com toda a sinceridade de sua alma :
– Senhor, é verdade que tenho sido observado como um homem de vida reprovável; mas, desde muitos anos, venho procurando empregar o dinheiro de modo que represente benefícios para todos os que me rodeiem na vida. Compreendendo Que aqui em Jericó havia muitos pais de família sem trabalho, organizei múltiplos serviços de criação de animais e de cultivo incessante da terra. Até de Jerusalém, muitas famílias já vieram buscar, em meus trabalhos, o indispensável recurso à vida!…
– Abençoado seja o teu esforço! – Replicou Jesus, cheio de bondade. Zaqueu ganhou novas forças e murmurou:
– Os servos de minha casa nunca me encontraram sem a sincera disposição de servi-los.
– Regozijo-me contigo – exclamou o Messias – porque todos nós somos servos de Nosso Pai.
O publicano, que tantas vezes fora injustamente acusado, experimentou grande satisfação. A palavra de Jesus era uma recompensa valiosa à sua consciência dedicada ao bem coletivo. Extasiado, levantou-se e, estendendo ao Cristo as mãos, exclamou alegremente :
– Senhor, Senhor, tão profunda é a minha alegria, que repartirei hoje com todos os necessitados a metade dos meus bens e se nalguma coisa tenho prejudicado a alguém, indenizá-lo-ei, quadruplicadamente!…
Jesus o abraçou com um formoso sorriso e respondeu:
– Bem-aventurado és tu que agora contemplas em tua, casa a verdadeira salvação.
Alguns dos discípulos, notadamente Felipe e Simão, não conseguiam ocultar as suas deduções desagradáveis. Mais ou menos aterrados às leis judaicas e atentando somente no sentido literal das lições do Messias, estranhavam aquela afabilidade de Jesus, aprovando os atas de um rico do mundo,
confessadamente publicano e pecador. E, como o dono da casa se ausentasse da reunião por alguns minutos, afim de providenciar sobre a vinda de seus filhos para conhecerem o Messias, Pedro e outros prorromperam numa chuva de pequeninas perguntas: Por que tamanha aprovação a um rico mesquinho?
As riquezas não eram condenadas pelo Evangelho do Reino? Por que não se hospedaram numa casa humilde e sim naquela vivenda suntuosa, em contraposição aos ensinos da humildade? Poderia alguém servir a Deus e ao mundo de pecados?
O Mestre deixou que cessassem as interrogações e esclareceu, com generosa firmeza:
– Amigos, acreditais, porventura, que o Evangelho tenha vindo ao mundo para, transformar todos os homens em miseráveis mendigos? Qual a esmola maior: a que socorre as necessidades de um dia ou a que adota providências para uma vida inteira?
No mundo vivem os que entesouram na terra e os que entesouraram no céu. Os primeiros escondem suas possibilidades no cofre da ambição e do egoísmo e, por vezes, atiram moedas douradas ao faminto que passa, procurando livrar-se de sua presença; os segundos ligam suas existências a vidas
numerosas, fazendo de seus servos e dos auxiliares de esforços a continuação de sua própria família.
Estes últimos sabem empregar o sagrado depósito de Deus e são seus mordomos fiéis, à face do mundo.
Os apóstolos ouviam-no espantados. Felipe, desejoso de se justificar, depois da argumentação incisiva do Cristo, exclamou:
– Senhor, eu não compreendia bem, porque trazia o meu pensamento fixado nos pobres que a vossa bondade nos ensinou a amar.
– Entretanto, Felipe – elucidou o Mestre – é necessário não nos perdermos em viciações do sentimento. Nunca ouviste falar numa terra pobre, numa arvore pobre, em animais desamparados? E, acima de tudo, nesses quadros da natureza a que Zaqueu procura atender, não vês o homem, nosso
irmão? Qual será o mais infeliz: o mendigo sem responsabilidade, a não ser a de sua própria manutenção, ou de pai carregado de filhinhos a lhe pedirem pão?
Como André o observasse, com grande brilho nos olhos, maravilhado com as suas explicações, o Mestre acentuou:
– Sim, amigos! ditosos os que repartirem os seus bens com os pobres; mas, bem-aventurados também os que consagrarem suas possibilidades aos movimentos da vida, cientes de que o mundo é um grande necessitado, e que sabem, assim, servir a Deus com as riquezas que lhes foram confiadas!
***
Em seguida, Zaqueu mandou servir uma grande mesa ao Senhor e aos discípulos, onde Jesus partiu o pão, partilhando do contentamento geral. Impulsionado por um júbilo insopitável, o chefe publicano de Jericó apresentou seus filhos a Jesus e mandou que seus servos festejassem aquela noite memorável para o seu coração.
Nos terreiros amplos da casa, crianças e velhos felizes cantaram hinos de cariciosa ventura, enquanto jovens em grande número tocavam flautas, enchendo de harmonias o ambiente.
Foi então que Jesus, reunidos todos, contou a formosa parábola dos talentos, conforme a narrativa dos apóstolos, e foi também que, pousando enternecido e generoso olhar sobre a figura de Zaqueu, seus lábios divinos pronunciaram as imorredoiras palavras: – “Bem-aventurado sejas tu, servo bom e fiel!”

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